segunda-feira, 29 de agosto de 2022

SONHO

 

Flávio Dutka


Essa noite tive um sonho estranho. Desses que não se sabe, sonho, lembrança ou fantasia. Sonhei que caminhava num jardim imenso, o barulho das folhas dançando, o verde vivo das árvores e o colorido das flores brilhando sob o sol intenso do meio dia. Tudo era claro e brilhante, num vento morno e convidativo. Pouco distante eu avistei três silhuetas. Eram distintas damas que discutiam sobre alguma coisa. Parecia muito relevante e insuspeito. Estavam sentadas ao redor de uma pequena mesa redonda, trabalhada no ferro numa pintura descascada do que um dia já foi branco.  
Eu me aproximei timidamente. Na lapela de seus vestidos eu notei bordado delicadamente a letra “C”. 
Eram tão diferentes e ao mesmo tempo exalavam a mesma afinidade rutilante. Tinham uma brisa sábia no falar. E falavam sobre tantas coisas: livros, música, política, educação, homens, mulheres, sobre o passado e o futuro. 
Riam de quase tudo, quase, quase tudo. 
Seus gestos e suas vozes mostravam a maturidade de quem já vivera muitas décadas e sabiam das dores do amor e da fugacidade. Mas em seus semblantes eu vi o brilho dos que acabaram de chegar. Estas jovens senhoras estavam visivelmente apaixonadas pelas palavras, pela literatura, pela vida. Eram amantes da poesia, me confessaram, despudoradas experientes na arte de compor. Estavam tão vivas, tão reais.
Numa gentileza prosaica a primeira me ofereceu  uma xícara de café. Ora, um cafezinho é sempre bem vindo, mesmo num sonho. A segunda me ofereceu um assento onde a luz do sol brincava com as sombras das folhas, me pareceu um lugar perfeito para sentar. A terceira me ofereceu um segredo mundano, que agora, agorinha eu não consigo me lembrar. Por alguns minutos eu esqueci que era tudo um sonho.
Eu parei alguns instantes de ouvi-las e comecei a observá-las com mais detalhes.
A primeira vestia branco, um branco encarnado e cru, nos olhos miúdos uma leveza e uma doçura que impunha as demais um tom matriarcal. Sobre a cabeça os fios ainda mais brancos escondiam poemas antigos que ela retirava e nos servia num pires sorrindo, sempre sorrindo. Quando lhe perguntei seu nome ela respondeu: - Meu nome é coração!
A segunda vestia azul, um azul indescritível que se movia ora azul claro, ora azul marinho. Um azul que se perdia, ora nos olhos, ora nas palavras de um menino. Eu poderia nadar pra sempre em todo aquele azul. Tinha um ar de mestra, maestra, maestria. Sobre as pernas cruzadas ela trazia um caderno, onde escrevia em silêncio. Exceto quando abria a boca para cantar uma melodia extremamente azul e quando perguntei seu nome ela sussurrou: - Meu nome é canção! 
Por fim eu me encantei com a terceira dama. Vestida de amarelo desbotado, na cabeça um lenço dourado, no rosto um sorriso e uma risada que irradiavam na pele negra iluminada. Tudo que ela falava nos fazia rir e chorar, nos fazia chorar e sorrir. Pois ela falava de tantas coisas importantes, de coisas dolorosas, de coisas coloridas e desbotadas. Para cada palavra que saia da sua boca uma cor se abria no jardim. Eu vi dentro dela um enorme vazio que ela preencheu com milhões, com bilhões de palavras que caíam do seus olhos. E antes que eu pudesse perguntar seu nome, ela se ergueu altiva e gritou: - Meu nome é coragem! E neste brado eu despertei. 
Essa noite tive um sonho estranho. 
Desses que não cabe, sonho, lembrança ou fantasia. 
Essa noite eu vivi um sonho. Um delírio poético que não posso explicar.
Quando dei por mim o dia amanhecia e o sol dourado e preguiçoso se despedia da noite fria e invadia as frestas da minha janela. 
Por alguns minutos eu tive a certeza insana que tudo foi real. 
E eu nem pude me despedir de minhas adoráveis damas, e afinal, sobre o que tanto discutiam com tanta paixão, graça e alegria. 
Acho que nunca vou saber. Só sei que passei o dia sorrindo, e juro, ainda estou sentindo o gosto de café e poesia. 




Milk




Nenhum comentário:

Postar um comentário